Hirondino, guardador de artes e de sonhos

Um pintor de Leiria faz de cicerone a grupos de interessados em visitar exposições e museus em Lisboa. O DN foi à casa-atelier de Hirondino Pedro Duarte, um autodidata defensor da natureza e do mundo rural.

Ao fundo de um campo de milho e antes de uma floresta – que só não é encantada porque é serpenteada de eucaliptos – mora Hirondino Pedro Duarte. À entrada do portão azul, da moradia que ele próprio desenhou e construiu no terreno herdado do avô, uma placa anuncia-lhe o nome e o que faz para ganhar a vida: desenhador de projetos. Mas do lado de lá do muro, esconde-se um paraíso de tintas, telas e pincéis, num atelier com vista para o pátio onde, quando não há visitas, convivem bem as galinhas e os patos, uma cabra e um bode, e ainda Bobi, o cão-amigo de todas as horas.

Essa vida plena no campo, na aldeia da Coucinheira (da freguesia de Amor, próximo de Leiria) foi uma escolha consciente do pintor Hirondino Pedro Duarte, 53 anos, nascido e criado entre os mesmos pinhais e searas de milho que os campos do Lis fazem multiplicar.

“Penso que a maior escola que tive foi o sentir a natureza diretamente, esta vida no campo. Sem isso eu não era o pintor que sou hoje. Porque de certa maneira só se consegue pintar, passar alguma coisa, se tivermos alguma coisa para dizer, um contacto real. E hoje a maioria das pessoas tem um contacto que é mediado, controlado. Seja o que aparece na tv, o que encontramos na net, nos jornais. E ter contacto com o real faz-nos ser o autor das nossas sensações, das nossas emoções”, diz.

Nesta espécie de declaração de interesses, o pintor reflete ao DN o que faz e o que pensa, enquanto artista e cidadão. Mas há mais: “Quando vejo o problema dos fogos – que é consequência do abandono do mundo rural – julgo que vem dessa falta de atenção à beleza e à grandeza da natureza”, sublinha. Por isso mesmo grande parte do seu trabalho “passa por contrariar essa ideia”. “E passa também por mostrar belezas e forças dessa energia do campo que nos pode alimentar – espiritualmente e economicamente. E que foi abandonada por ignorância e por desprezo, por falta de compreensão do mundo rural.”

A parceria com Manuel João Vieira

Em pequeno, Hirondino gostava de banda desenhada. Foi assim, através dos livros, que chegou às obras dos pintores da história da arte, que havia na biblioteca da escola secundária onde estudava, na Marinha Grande. Começou a pintar aos 14 anos, terá feito a primeira exposição por volta dos 18, com a anuência dos pais (ele operário e ela doméstica), que disfarçavam o orgulho, apoiando-o sempre. Ao ponto de lhe montarem um atelier.

“Nunca tive grandes dificuldades em pintar. Se queria fazer, fazia. Na altura ia a Lisboa comprar as tintas, e era uma coisa natural. Mais tarde comecei a ganhar conhecimentos e fui aperfeiçoando técnicas“, conta ao DN, ele que não é um entusiasta do termo “autodidata”. “Dá ideia de que fazes tu a partir de ti, sem outros conhecimentos.” E na verdade, Hirondino fez um percurso. E consegue encontrar uma certa vantagem no caminho percorrido, de forma autónoma, em relação ao que lhe teria acontecido se o tivesse feito numa escola. “Aí teria de provar aos professores do que era capaz, para ter notas. E no meu caso, o que nos motiva é uma força mais real, que nos faz avançar. No fundo, eu estudei arte fora da escola. Mas estudei. Fui buscar muita informação , li imenso, procurei tudo o que pude”.

Passados mais de 30 anos, perdeu a conta às exposições que fez, individuais e coletivas. Não gosta de enumerar as que mais o marcaram: “De certa maneira tive momentos felizes em todas elas.” Mas há duas de que gostou particularmente, feitas em parceria com Manuel João Vieira, o carismático músico de quem se tornou amigo, há cerca de três anos. O (primeiro) encontro aconteceu ali mesmo, na casa-atelier de Hirondino, num dia seguinte a uma violenta tempestade que lhe atirou pinheiros para o quintal, levantou telhas e deixou um rasto de destruição.

O mentor dos Ena Pá 2000 apareceu-lhe em casa com uma amiga comum. “Estava tudo de pantanas, ele olhou para as árvores no chão e disse-me “tiveste azar. Agora só tens uma solução: é plantares outras.” Entendemo-nos logo bem. Eu conhecia o trabalho dele, não só as músicas como a faceta que a maioria não conhece, a de pintor”. E então fizeram trabalhos em conjunto, programaram exposições, tornaram-se amigos.

De Leiria a Lisboa são poucos horas de distância

Hirondino fala das viagens e das visitas aos museus para chegarmos então a uma das atividades que atualmente dinamiza em Leiria: viagens a Lisboa, pequenas excursões com grupos que podem variar entre seis ou 12 pessoas, em que ele serve de cicerone nas exposições e nos museus.

A ideia nasceu nas aulas de pintura que dá no Atelier das Artes, na associação Acrenarmo, em Leiria. Depois da licenciatura em animação cultural (cujo bichinho lhe ficou das vivências nas coletividades de Coucinheira e Casal dos Claros), acedeu ao convite “para fazer algumas coisas”. Fazia-lhe lembrar os tempos de tanta atividade cultural e recreativa que se viveu em Portugal no pós 25 de Abril, de que a aldeia da Coucinheira era palco constante, e em que ele próprio participou ativamente.

“Sempre acreditei que as Artes são uma mais-valia para a vivência de cada um”, diz. De modo que, quando nasceu a ideia de pegar num grupo e zarpar até à capital, ao encontro de exposições, lembrou-se de Espinosa, o filósofo que tanto admira. “Ele diz que a alegria está no desenvolvimento das nossas potencialidades. E eu fui reparando que, apesar de sermos todos pessoas diferentes, temos necessidades muito comuns, como ser, participar, fazê-lo com alegria. E quis dar essa possibilidade. Porque comecei a ver que havia outras pessoas interessadas em ir a museus e ver exposições. E como eu tinha conhecimento sobre a matéria podia ser uma mais-valia.”

É assim desde 2015. Alexandra Azambuja – que já participou numa exposição de Hirondino, através de alguns textos que acompanhavam a pintura, foi uma das primeiras a aderir à iniciativa das excursões. “Foi como deixar de ser o boi a olhar para o palácio”, ironiza, ela que naquele novembro desse ano foi a Lisboa “num domingo de manhã cheio de sol”.

“Eu – que odeio ajuntamentos de mais de 2 pessoas e tudo o que cheire a excursão – fui com o grupo de participantes do Atelier das Artes de Leiria ver duas exposições de pintura. Daquela a sério: Sousa Lopes no Museu do Chiado, Weenix e Rembrandt na Gulbenkian”, recorda ao DN. Lembra-se de tudo daquele dia: “Com um cicerone especial, o Hirondino, fui feita ruminante olhar por dentro das telas, por dentro das formas, por dentro das cores e afinal aquilo tudo era muito mais do que parecia e muito pouco do que parecia. Nesse domingo e numa Lisboa cheia de sol e gente feliz, vi-me a olhar para o detalhe, para o todo, para a História e para a época. Uma pintura não era uma pintura, uma obra não era um autor, tudo era uma época, uma perspetiva do mundo e o mundo era – e continua a ser – vasto.”

Quando conta aquela primeira experiência de quem nos últimos anos pouco vai à capital, antecipa a pergunta: “Se eu voltei para a província feita ruminante? Voltei. Mas agora o palácio piscava-me o olho.” E afinal, estava cumprido um desígnio – como tem estado sempre, desde então, para os pequenos grupos que se juntam para ir ao encontro da arte.

“Eu acredito que a transformação cultural é que determina a qualidade de vida das pessoas”, diz Hirondino, guardador da arte. E de sonhos.

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